NOTA TÉCNICA

O INSITUTO NACIONAL DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA, após deliberação da sua Diretoria, emite as seguintes considerações sobre a implementação de Cotas para Mulheres Vítimas de Violência nas Contratações Públicas

  1. Introdução
    A inclusão de critérios sociais nas contratações públicas tem se consolidado como um importante instrumento de transformação social. Nesse contexto, destaca-se a recente evolução normativa relacionada à reserva de vagas para mulheres vítimas de violência doméstica em contratos administrativos.
    Inicialmente regulamentado pelo Decreto Federal nº 11.430/2023, o tema ganhou novos contornos com a publicação do Decreto Federal nº 12.516/2025, que alterou os parâmetros anteriormente fixados. Mais do que uma simples alteração quantitativa, a mudança suscita uma reflexão essencial: estamos diante de uma efetiva política pública ou apenas de uma ação isolada do Estado?

  2. O Contexto Normativo
    O Decreto nº 11.430/2023 regulamentou no âmbito federal os incisos I do §9º do art. 25 e III do caput do art. 60 da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), estabelecendo:1

    – Exigência de percentual mínimo de 8% de mão de obra constituída por mulheres vítimas de violência doméstica nos contratos de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão de obra, desde que o contrato envolvesse pelo menos 25 empregados.
    – Previsão de ações de equidade de gênero como critério de desempate em licitações.

    Entretanto, com o advento do Decreto nº 12.516/2025, houve uma modificação das condições, permitindo a aplicação da política mesmo em contratos com quantitativo inferior a 25 colaboradores, desde que observada a proporcionalidade.

  3. Elementos Conceituais: A Diferença entre Ação Estatal e Política Pública
    Para compreender os impactos dessas mudanças, é preciso distinguir os conceitos de ação estatal e política pública estruturada.
    Segundo a literatura especializada, políticas públicas consistem em um conjunto organizado e articulado de decisões e ações governamentais, orientadas à resolução de problemas sociais específicos, visando à produção de resultados sustentáveis no interesse público.

    O ciclo de políticas públicas envolve etapas essenciais, a saber:2
    -Formação da agenda pública: Reconhecimento e priorização do problema.
    -Formulação da política: Definição das alternativas e soluções.
    -Tomada de decisão: Opção governamental por determinada estratégia.
    -Implementação: Execução das ações planejadas.
    -Monitoramento: Acompanhamento da execução.
    Avaliação: Verificação de resultados e impactos.

    Por sua vez, entende-se como ação estatal toda atividade exercida pelo Estado, independentemente de sua natureza jurídica.

  4. Análise Crítica: Em que etapa estamos?
    No caso em análise, ainda que exista decisão normativa (Decretos) e previsão legal (Lei nº 14.133/2021), não há indícios de que a política tenha sido precedida por:

    -Diagnóstico detalhado sobre o problema social visado (mulheres vítimas de violência no mercado de trabalho);
    -Estudos técnicos que dimensionem o impacto da medida;
    -Publicação das evidências e dados para demonstrar a eficácia social da ação em si;
    -Instrumentos de monitoramento ou de avaliação de efetividade.

    Pelo contrário, a alteração normativa recente ocorreu sem que houvesse qualquer análise pública sobre os resultados alcançados desde 2023.
    Essa situação evidencia um risco de descaracterização da política pública, transformando-a em mera ação administrativa, desprovida das fases essenciais de formulação, implementação com controle e avaliação.

  5. Riscos da Ausência de Monitoramento e Avaliação
    A não observância do ciclo completo de políticas públicas pode gerar sérios prejuízos institucionais e sociais, tais como:

    -Descontinuidade administrativa;
    -Baixa efetividade social;
    -Ausência de accountability e de transparência quanto aos resultados esperados;
    -Dificuldade de mensuração de impactos sobre o público-alvo.

    Além disso, ao ampliar a aplicação da medida sem evidências empíricas de seu sucesso, o governo federal corre o risco de ampliar custos administrativos sem garantir o atingimento dos objetivos sociais pretendidos.

  6. Considerações Finais
    Embora a inserção de critérios sociais nas contratações públicas seja medida louvável e alinhada aos princípios constitucionais de inclusão e promoção da dignidade da pessoa humana, sua implementação exige rigor metodológico e transparência dos resultados pretendidos e os alcançados.
    A ausência de um ciclo de políticas públicas bem estruturado, com destaque para as fases de monitoramento e avaliação, pode resultar na ineficácia da ação estatal e na perda de credibilidade de iniciativas futuras.
    A transição de uma ação isolada para uma política pública efetiva depende, sobretudo, da produção de evidências, do controle social e da institucionalização de mecanismos de governança e avaliação de resultados.


    Luciano Elias Reis
    Presidente do INCP

    Christianne de Carvalho Stroppa
    Secretária Geral do INCP

  1. Ressalta-se a importância de os entes, no uso de sua prerrogativa de regulamentação, emitirem atos normativos para disciplinar o tema em sua respectiva esfera. ↩︎
  2. Ainda que na doutrina e literatura especializada atualmente haja outras formatações para a classificação da política pública, contudo se aborda para esta nota a ideia de ciclo. ↩︎